Várias matérias têm sido veiculadas nas últimas semanas sobre o direito ou não à privacidade dos biografados. Polêmicas à parte, trago aqui alguns aspectos para contribuir com a reflexão crítica a respeito.
O primeiro é a sensação de invasão de privacidade, por vezes constrangedora, que particularmente tenho experimentado ao ler a biografia de Bruce Springsteen, que está à minha cabeceira no momento. É como olhar pelo buraco da fechadura da vida do personagem, adentrar à casa dele, sem ao menos bater a porta. Tal sentimento não é comum a todas as biografias, mas talvez às mais bem escritas e as quais contaram com os depoimentos mais íntimos do próprio biografado, o que é o caso desta de Carlin com frases do próprio Bruce. O próprio autor destaca nas páginas iniciais a importância da colaboração dele. É interessante a transição da visão de fã para a de conhecer aspectos da pessoa por trás do manto da fama.
Por outro lado, há alguns efeitos colaterais inevitáveis a qualquer figura pública, biografadas ou não. Exemplifico. Há alguns anos tive o prazer de conhecer o jornalista Elias Awad pessoalmente, em uma conversa na editora, sobre um provável projeto na área de biografias. Na ocasião ele me presenteou com a biografia, escrita por ele, do sequestrador do Silvio Santos. Nela o sequestrador detalha como decidiu quem seria sua vítima. Ele entrou em uma livraria e, ao ler uma biografia do Silvio Santos, conheceu detalhes de sua rotina, moradia e outros que o fizeram decidir por ele. Ao levar a cabo o seu plano acabou sequestrando a filha, mas retornou à casa de Silvio após uma fuga cinematográfica dos policiais, que segundo ele, estavam atrás do dinheiro. Encontrou Silvio na academia da casa e, pedindo proteção, acabou se entregando à polícia. Morreu na prisão de causas incertas.
O texto acima pode passar a impressão de que ser biografado é sim uma invasão à privacidade e pode colocar em risco a vida dos personagens. Não é o caso. As biografias têm uma enorme importância histórica e de experiências de vida. O fato de ter ou não a contribuição do próprio personagem pode ser a diferença entre a profundidade do conteúdo, mesmo que na opinião de alguns autores a visão do biografado possa prejudicar a isenção, e conteúdos com uma boa dose de ficção e visões distanciadas da realidade ou até o de apresentar apenas um lado da moeda. Faz parte do trabalho do autor investigar a fundo o personagem e todos à sua volta, de forma a construir a multiplicidade de características e subjetividades do personagem. Contar ou não com todos os atores não impede a execução de um bom trabalho, mas exige maior reflexão e criatividade por parte do autor para preencher as lacunas do personagem.
A propósito, tem sido uma bela experiência trabalhar com o Sergio Vilas-Boas, que recentemente lançou conosco os perfis de Ivens Dias Branco e de Luiz Alberto Garcia. Ambos personagens, seus respectivos familiares e pessoas próximas participaram ativamente, mas Sergio teve a liberdade de costurar todo o enredo da forma que ele os concebeu.
Para ler mais a respeito, saiu uma matéria na Folha de SP do dia 04.11, ontem, que faz um apanhado de todos os trabalhos que de alguma forma passaram pela justiça. Em um dos exemplos há a decisão de excluir o nome de uma ex-amante retratada no livro “Os irmãos Karamabloch – ascensão e queda de um império familiar”, de Arnaldo Bloch, excelente leitura. Li há alguns anos e admirei a coragem e a abordagem que Arnaldo fez, criando uma leitura fluída e romanceada que prende o leitor.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/137215-justica-do-pais-veta-25-obras-em-dez-anos.shtml